Cai a popularidade e FHC reage com discurso astuto para esconder a reeleição
Altair Thury Filho e Laura Capriglione
O teatro da política teve um momento de glória na quarta-feira passada, na posse de dois novos ministros, Iris Resende, da Justiça, e Eliseu Padilha, dos Transportes. Rompendo seu costume de falar de improviso em ocasiões semelhantes, o presidente Fernando Henrique Cardoso leu um discurso em que cada vírgula foi craniada. Na entonação e nos gestos, usou estilo grave, como se a pátria estivesse em perigo. Afinal, era o seu primeiro pronunciamento público desde que apareceram as fitas em que dois deputados do PFL, Ronivon Santiago e João Maia, confessavam candidamente ter embolsado 200.000 reais cada um para votar a favor da emenda da reeleição, dizendo que a fonte monetária da corrupção era o ministro Sergio Motta, tucano da gema. Mas, no seu discurso, o presidente falou apenas de passagem, e mesmo assim em tom de caso encerrado, da compra de votos, das fitas, da corrupção, da emenda constitucional feita sob medida para contemplar seu plano continuísta. O presidente Fernando Henrique Cardoso assumiu aquilo que o sociólogo Fernando Henrique chamava de “o discurso da ordem”. Só faltou alertar para o perigo vermelho e para os comunistas que comem criancinhas.
“A sociedade brasileira exige um basta a esse clima de baderna”, disse o presidente. Referindo-se a manifestações de sem-terra e à morte de três sem-teto em São Paulo, explicou que “pedras, paus e coquetéis Molotov são argumentos tão pouco válidos quanto as baionetas”, deu uma paradinha à la Paulo Autran, para sublinhar o que vinha em seguida, e arrematou: “Só que menos poderosos”. Quando a oposição gritava, o então presidente João Figueiredo ameaçava “chamar o Pires”, insinuando que o seu ministro do Exército era mais troglodita que ele. José Sarney, em situações semelhantes, posava em palanques ao lado de ministros militares, talvez querendo demonstrar que a democracia era uma flor frágil. Fernando Henrique deixou os quepes de lado e recorreu ao seu grande trunfo político: o gogó. Misturou na sua oratória a tomada do Ministério do Planejamento, com peru e tudo, pelos sem-terra, as manifestações contra a privatização da Vale do Rio Doce, pedradas de radicais contra sua comitiva durante viagem a Belo Horizonte, corrupção, insubordinação. Não falou, mas a queima do pataxó em Brasília e as torturas e assassinatos da PM na favela Naval e em Cidade de Deus pareciam integrar o seu raciocínio. Nas suas palavras, o Brasil parece estar-se desagregando.
Conversas com ACM — Falar em nome da ordem é menos fácil do que parece. Baderna por baderna, a PM dos governadores tucanos tem promovido as maiores. Quem levou um peru para a sala de Antonio Kandir não foi o PT nem o MST, mas um sindicalista do PSDB, Francisco Urbano, tucano histórico. O discurso alarmado e alarmista de Fernando Henrique Cardoso surgiu de suas conversas com o presidente do Congresso, senador Antonio Carlos Magalhães, que também discutiu a suposta crise de autoridade com donos de jornais. Além do intento de diluir a lama da compra de votos pró-reeleição, o discurso presidencial foi uma tentativa de resposta à perda de popularidade do governo, segundo o último levantamento do Ibope. Nos últimos dois meses, a aprovação do governo de Fernando Henrique caiu 20 pontos, uma queda colossal — é como se a cada dia, no país inteiro, 350.000 eleitores passassem a falar mal do Planalto. Encerrada na segunda semana de maio, a pesquisa terminou antes que viesse a público a confissão dos dois deputados reelecionistas. Carlos Augusto Montenegro, diretor do Ibope, acha que a queda da popularidade seria maior se a compra de votos já tivesse sido divulgada.
A explicação para a diminuição é óbvia: nos últimos três meses o governo piorou. É sempre assim, aliás, quando os presidentes perdem popularidade. A pesquisa de junho do ano passado, por exemplo, captou dois fatos que abriram uma ferida na imagem presidencial: o massacre de Eldorado dos Carajás, em que morreram dezenove sem-terra, e, pouco antes, a tragédia num centro de hemodiálise de Caruaru, que provocou a morte de mais de cinqüenta pessoas. Encarando o massacre dos sem-terra como fruto do descaso do governo pela reforma agrária e as mortes de Caruaru como falta de interesse pela saúde pública, a população deixou Fernando Henrique com seu mais baixo índice de aprovação desde a posse. Agora, avalia Montenegro, novamente foi a ferida social que arranhou a imagem presidencial. Ele lembra que, nos últimos três meses, Brasília foi ocupada pelo protesto dos sem-terra, também houve a privatização da estatal Vale do Rio Doce — medida com a qual a maioria da população não estava de acordo, segundo as pesquisas — e o reajuste do salário mínimo, de apenas 8 reais. “O povo estava satisfeito com a estabilidade do real, mas queria avançar mais e sofreu uma grande decepção”, explica Montenegro. FHC segue popularíssimo entre as classes mais humildes e perde apoio entre os de maior escolaridade. Entre os com formação superior, seus críticos eram 27%, e agora somam 50%. “Essas pessoas consideram que o governo não está fazendo tudo o que seria possível para resolver o drama social do país”, diz a pesquisadora de mercado Fátima Pacheco Jordão.
Enquanto FHC interpretava a peça da ordem, no mundo real da política o PFL e o PSDB matavam de maneira fulminante todas as tentativas de investigar quem comprou os votos de Ronivon e João Maia. Os deputados, ambos do PFL, renunciaram a seus mandatos com cartas em que cometem os mesmíssimos erros de português. Com isso, evitam a cassação e, já no próximo ano, poderão candidatar-se e ser eleitos de novo, com menos de 8.000 votos, num processo relâmpago. Os governadores do Acre, Orleir Cameli, e do Amazonas, Amazonino Mendes, também do PFL, apontados nas fitas como articuladores da compra dos votos, serão investigados pelas Assembléias de seus Estados — lendárias pelo servilismo. O ministro das Comunicações, Sergio Motta, que é citado nas fitas como possível pagador final das propinas, viajou para Portugal. No governo, no PFL e no PSDB ninguém quer investigar nada sobre os votos da reeleição. Por quê? Porque têm medo que uma eventual CPI coloque o governo na defensiva durante meses. E também porque receiam o que poderia aparecer em matéria de corrupção reeleitoral. Essa política está mudando sensivelmente o perfil do governo de Fernando Henrique.
Tucanos brigados — A nomeação de Iris Resende e Eliseu Padilha é outro sintoma dessa mudança. Iris Resende introduziu o estilo Mombaça no governo tucano, organizando uma festa de milhares de pessoas, trazidas de Goiânia para festejar sua posse. Com aquele apetite de quem nem se importa com a etiqueta, os cabos eleitorais gritavam “Iris presidente”. Não parecia cena de campanha. Era. Embora esteja assumindo um ministério no qual terá de dialogar com juristas, comandar a Polícia Federal e será o responsável por atividades sérias como o combate ao tráfico de drogas e o controle de fronteiras, Iris assumiu a Pasta da Justiça para usá-la como trampolim na sua campanha pelo governo de Goiás, que quer disputar no próximo ano. Fernando Henrique torce o nariz para esse eleitoralismo, mas tapa-o porque precisa de Iris para acalmar o PMDB e ter os votos necessários na segunda rodada da votação da reeleição, na Câmara. Nem torce tanto o nariz, pois FHC não batalhou para que permanecesse na secretaria-geral do Ministério da Justiça Milton Seligman, um técnico identificado com os ideais do tucanismo.
A capacidade técnica diminui e impera a necessidade política do reeleitoralismo. Da velha guarda tucana ficaram dois nomes, Sergio Motta e Paulo Renato Souza. Para infelicidade do PSDB, Motta está queimado, e Paulo Renato vive se queixando nos cantos de seu colega das Comunicações. Paulo Renato levou dois dias para se solidarizar com Sergio Motta em função da denúncia dos deputados do Acre, e a solidariedade foi telefônica. Motta disse-lhe que preferia uma solidariedade pública, e não privada. Se os tucanos se desentendem, o PFL parece prestes a ocupar mais espaço no governo. Em duas conversas com FHC no início da semana, o deputado pefelista Luís Eduardo Magalhães saiu com a impressão de que estava sendo sondado para entrar no ministério, encarregando-se da coordenação política. Mas a dois interlocutores de sua confiança, o presidente garantiu não ter feito convite algum. Numa última conversa, na sexta-feira, Luís Eduardo saiu do gabinete presidencial achando que tinha sido convidado para ser líder do governo na Câmara. Viajou para a Alemanha em seguida, dizendo que ia pensar.